Histórias de Moradores da Vila Sônia

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar histórias e depoimentos dos Moradores do bairro.

História do Morador: Marco Antonio Iadocicco (Marco Pezão)
Local: São Paulo
Publicado em: 22/06/2015

 



"Nós é ponte e atravessa qualquer rio"
Sinopse:

Em seu depoimento para o Museu da Pessoa, Marco Antonio Iadocicco, o Marco Pezão, comenta sobre sua infância na Vila Sônia, as peladas no bairro e sobre o seu primeiro filho e sobre o casamento ainda bem jovem. Fala sobre sua primeira profissão: mecânico de máquina de escrever, sobre o teatro e como a poesia apareceu em sua vida. Também fala de seus namoros e do segundo casamento, do trabalho como jornalista e como fotógrafo. Enfatiza o seu trabalho nos saraus e declama poesias de sua autoria.


História

Meu nome é Marco Antonio Iadocicco. Nasci na Vila Sônia, São Paulo, em 5 de fevereiro de 1951. Meus pais são João Iadocicco, funcionário público, falecido. Minha mãe, Iolanda Iadocicco, doméstica. Somos quatro irmãos. Chicão o mais velho, Francisco. A minha irmã abaixo de mim, Maria Antonieta, e o mais novo Luís Alberto. Eu sou de 50, então, o ônibus, por exemplo, ia só até o Caxingui, não tinha ônibus até a Vila Sônia. A Francisco Morato que hoje é uma tremenda de uma avenida era um viesinho de nada. Eram os terrenos da City tudo descampados, o meu nonno Francisco, a minha família veio do Itaim Bibi, os filhos casaram, o pai, os irmãos, uma família grande. O nonno fez com que todos comprassem, compraram um quarteirão inteirinho, então ficou todo mundo vizinho, a família toda na Rua Manuel Jacinto.

A infância foi muito bacana. Construímos um campinho de futebol atrás, na Rua Mandiçununga que, por coincidência, dava fundo a casa de todo mundo, o campo, o terreno. Eu fiz ginásio na Vila Sônia. Eu casei muito cedo e assumi a paternidade desse filho. Assumi, casamos, tive a idade emancipada pra poder casar com a menina, ela tinha 15 anos. Teve uma confusão naquela época. Mas assumi. Mas deixei de estudar porque tinha que trabalhar, essas coisas, tinha que sustentar e tudo. Também futebol atrapalhou, eu estava na Portuguesa essa época, também atrapalhou.

Eu lia muito gibi. Lembro também que o meu pai tinha uma coleção do Monteiro Lobato que eu gostava muito, Dom Quixote também. Mas a minha pegada da poesia, mesmo, veio já depois de casar quando eu volto a estudar. Eu vou pro Campo Limpo, estava com meus 20 anos, 21 anos mais ou menos e falei: “Vou voltar a estudar”. Já era época da ditadura, nos anos 70. Nessa época a igreja começava a dar abertura pra essas coisas, então a gente ia pros salões das igrejas, em bar, na rua, em outros colégios. E a poesia começou a vir através disso. Eu me entusiasmei e fui fazer teatro profissional. A minha profissão era mecânico de máquina de escrever. Porque a minha família, meu tio, tudo, eram mecânicos de máquina de escrever e somar. Ele era gerente de uma firma na Rua Francisca Miquelina, na Bela Vista, chamado Addo Máquinas de Escritório, que era uma firma alemã que representava uma máquina de escrever chamada Siemag e a máquina de somar Addo. Ali eu aprendi a profissão de mecânico de máquina de escrever.

Trabalhei muito tempo nisso, muito tempo. A máquina de escrever perdurou durante muito tempo, negócio do computador vem a partir dos anos 2000, 2001 que começou a proliferar. Como eu tinha que sobreviver pra consertar as coisas, pra poder fazer teatro, não parava, trabalha e estuda, fazia teatro, poesia, então a vida toda consertei máquina, até já com idade mesmo, onde aparecia um bico eu ia fazer. Fui fazer teatro profissional. Durante esse tempo também, com uma professora, ela criou um grupo chamado Juntando Isso Dá Poesia. As pessoas reuniam e ficavam falando poesia, treinando e tal, não era uma coisa aberta, era um grupo que se encontrava pra falar poesia e tal. Eu fui fazer teatro profissional, fui fazer Cartas Chilenas, com o grupo de Agosto. Escrevia mesmo, por gostar mesmo.

Lógico, é do teatro e tudo, teatro é escrita, aquela coisa toda. Mas não pensava. O livro, a coisa do livro já vem depois mesmo, com a Cooperifa. O fato de eu começar a escrever, por exemplo, quando eu fui fazer jornal lá em Taboão eu tinha uma coisa na cabeça: “Não, preciso aprender a escrever”, eu sabia das minhas deficiências. “Cara, eu preciso aprender”. E o único jeito de aprender era escrever bastante, eu falei: “Não, é prática. Voltar pra faculdade eu não vou voltar, mano. É bobagem, eu não vou voltar mais pra faculdade”. A coisa gozada foi que eu já conhecia a Otília, nós montamos, claro, eu mecânico, ela precisando trabalhar, montamos uma floricultura na garagem de casa.

Eu tenho dois filhos, Marcos César e Andréia. Eu já estava separado e a ex-esposa, a Vilma, morava no Umarizal, um bairro lá próximo do Campo Limpo. E a Otília, a família também era do Umarizal. Os dois começam a namorar, a minha filha e o filho da Otília, o Duda. Aí ele engravida a minha filha. A nossa neta realmente, ela é neta original dela e minha, é filha do filho dela e filha da minha filha. Os dois acabaram se separando e nós ficamos juntos. Montamos uma floricultura e a gente se curte até hoje. Estamos juntos há 27 anos.

Fiz comunicação lá na FIAM, década de 80. A fotografia veio em decorrência do que eu optei. Em 96, 97, por aí, eu fiz uma crítica lá em Taboão, me pediram para eu fazer uma matéria e eu fiz uma crítica no jornal e tal. Comecei a criar as matérias. A coluna era “Falando de Nós”. “Vamos falar de nós, pra que falar do Pelé, pra que falar dos caras? Todo mundo fala deles, mano. Eu vou falar aqui do Pelezinho, dos caras daqui, mano”. Essa coisa pegou. Foi nesse movimento todo que veio, a própria poesia, o próprio sarau também, foi a coisa da autoestima, eu falei: “Não mano, vamos falar de nós, somos nós, vai ficar falando sobre os outros? Vamos nos valorizar”. A ideia era da gente se valorizar. Porque a periferia sempre foi escrachada. E realmente, na região do Taboão, só dali você vê, Mano Brown, do Rosana, é próximo. Rosana, Mano Brown, Ferrez, Sérgio Vaz, é tudo próximo um do outro. Binho. É uma região fortuita de movimento, de pessoas que trabalharam em torno dessa coisa da autoestima da periferia, trabalha até hoje.

O primeiro sarau levamos uma quantidade de poesia, o que levamos de papel e tudo, lemos cada um acho que umas 15 poesias, tinha uns quatro convidados. Nós lemos poesia pra cacete! O meu foi Mina da Periferia, que era o grande sucesso na época.

O Garajão, vamos dizer assim, o bar eram três salas contíguas. Uma ficava lá uma mesa de bilhar de um lado, tinha um balcão como se fosse essa entrada, aí tinha uma porta de vidro e tinha uma sala um pouco maior que essa, assim, do lado, e tinha um jardim. Era um posto de gasolina que é de uma família que tem um casão, que hoje fechou tudo, continua lá, mas virou tudo parte da casa, virou um outra coisa. Então era naquele espaço que a gente colocou microfone, as faixas, bandeira do Brasil e depois o Sérgio trouxe a frase “O Silêncio é uma Prece”, que veio depois, e a gente começou a se reunir.

O Sarau da Cooperifa começa em outubro de 2001. Nunca parou. Nunca parou. Isso em 2000, ficamos lá até 2003 no Bar Garajão. Em 2004 ia ter eleição na cidade e os donos do bar que era o Doriano, o Bodão, o Renato, os caras estavam envolvidos com política, houve lá um desacerto entre eles, resolveram vender o bar. O Sérgio arruma o bar do Zé Batidão, que o Sérgio nasceu na Piraporinha, perto desse bar, o pai trabalhou nesse bar, tem essas coisas todas, a história dele lá.

Então o Sarau da Cooperifa sai do Taboão, do Garajão, vai lá pro Zé Batidão, isso em 2003 pra 2004. Na época o Zé Batidão dava até uma força e colocava lá uma van pros poetas, que os poetas eram tudo de lá da área, né? Então ia tudo de van pra lá pro Zé Batidão, começou a fazer lá. O Zé Batidão, a princípio também bar, vamos dizer, lá era bem maior, tem quase três salas como essa assim, um palcão no fundo, tinha uma área aberta, que com o tempo ele fechou, ele meteu uma laje, fechou tudo. Agora em cima eles fazem inclusive um cinema na laje. Mas lá é um belo de um bar. O Sarau do Binho. O Binho volta da Inglaterra e monta tipo uma pastelaria bem em frente ao Kennedy. Eu estou lá na rua trabalhando, fazendo matéria de várzea. Eu passo e vejo lá um poema no poste, e junto: Postesia.

O princípio de tudo foi isso claramente pra nós tínhamos em mente trabalhar a autoestima das pessoas, revelar, estimular a leitura, que as pessoas escrevessem e fossem lá falar a sua poesia. Lógico, a gente chama hoje de literatura periférica, como se fala em literatura marginal, mas a meu ver é literatura periférica, é um outro momento. Literatura marginal foi um outro tempo, década de 70, ditadura, foi um outro tempo. Agora hoje é diferente. E o que a gente procurou fazer? Você pode ver é um cunho social, é sempre um cunho social, sempre buscando aquela coisa do onde os pés pisam. Falar daquilo que a gente conhece. O Leonardo Boff fala muito isso, do voo da águia, onde os pés pisam. E a gente começou a estimular isso, as pessoas falarem do seu bairro, falarem das coisas que acontecem, seja do lado do amor, seja não sei o quê, mas falando da sua região, da sua rua, dos seus problemas, começamos a estimular. E lógico, um escreve, outro escreve, vai estimulando. E essa coisa da autoestima é o fato da gente poder, a quantidade de gente que voltou a estudar, que foi estimulada a voltar a estudar, que acabou escrevendo livro.

A quantidade de pessoas que lançou livros, se agregou ao lance da literatura, foi essa coisa da autoestima mesmo, que a gente foi, até hoje essa é a pegada. Por exemplo, quando eu fui trabalhar, fazer sarau na Casa das Rosas, lógico, eu recebi um monte de crítica: “A periferia na Avenida Paulista, ô cacete”. Mas eu soube purgar tudo isso, entendeu? Está certo que a Casa das Rosas é na Avenida Paulista, mas de ir ao centro, vem poetas da Lapa, vem poeta da Mooca, vem poeta de Barueri, vem gente de tudo quanto é lado. No último sarau, lá de Sorocaba uma mãe me escreveu: “Minha filha fez um livro, tem 11 anos de idade”. Levamos lá na Casa, lançamos o livro dela numa festa, agora dia 2 ela vai voltar. Isso é coisa do estímulo, da autoestima. E a pegada nossa é a oralidade, é falar, então ir lá, escrever e falar. Transforme o pensamento em poesia e tenha a coragem de dizê-lo, esta é a ideia, transformar, transformar o pensamento em poesia e mandar bala.

Mapa da Poesia foi um projeto que teve, foi do poeta Frederico Barbosa. Eu já estava me desligando da Cooperifa, eu fui fazer Sarau da Cultura em Taboão da Serra, Sarau do Departamento da Cultura, na época. Eu fui lá, fiz algum tempo e depois ele me convidou pra fazer o Mapa da Poesia. Eu comecei rodar São Paulo indo nos saraus, fotografando saraus e tudo e alimentando essa ideia. Naquela época, em 2009, 2010, mais ou menos, eu registrei naquela época 60 e poucos saraus e eu fiquei assombrado. Foi muito, muito legal. E tudo a partir de uma ideia nossa.

A Cooperifa, meu amigo, até hoje se eu vou me dá dor na barriga. É um trabalho que sempre me emociona muito. Então já foi muitos, o tempo todo, sempre fui muito envolvido, sempre estive com sentimentos e tudo, a ligação, a luta pela poesia. A gente brigava. Tinha uma coisa da Cooperifa, o Sérgio Vaz falava isso desde o início: “Vamos questionar! Temos que questionar! Questionar! Questionar!” Meu, a gente se questionou tanto que a gente acabou até discutindo. Foi uma coisa louca. E a coisa foi mesmo se questionando e as coisas foram pra rua mesmo. A coisa do sarau, do movimento, do questionamento. Tanto é que hoje a gente vê vários projetos como Vai, alguns, e tudo, a nascente toda, o agito todo vem dos saraus, entendeu? O sarau que fez essa ebulição toda, foi esse trabalho. Claro, a Cooperifa é um grande, a mãe, Cooperifa é a célula maior, né? Mas todo mundo, Binho, o Sarau do Binho está fazendo dez anos agora. A Cooperifa faz 15, o Sarau do Binho faz dez, é uma pegada. Lá hoje na Casa das Rosas faz quatro anos, eu vou pra cinco anos, e tem todo mundo essa pegada. Agora estou montando lá, no Campo Limpo, I Love Laje.

Continuei como jornalista, repórter, fiz o Sarau da Cultura lá no Taboão e depois vou pro centro, é aquele negócio de atravessar ponte, fui fazer o Mapa da Poesia. Foi um trabalho bacana e do trabalho do Mapa da Poesia que nasce esse sarau na Casa das Rosas, o A Plenos Pulmões, que é um poema do Maiakovski. Inclusive quem deu o nome foi o Frederico Barbosa. Numa reunião ele falou: “Um nome bacana seria um puta de um vozeirão, A Plenos Pulmões”, pô, o poema do Maiakovski, tem tudo a ver. E ficou A Plenos Pulmões. Também foi uma luta pra fazer pegar. No último sarau tínhamos 52 participantes, casa lotada. E, lógico, por experiência eu sei, o Cooperifa pra pegar mesmo demorou quatro anos, três, quatro anos que ela consolidou. A Cooperifa consolidou quando a gente foi chamado pra fazer o programa da Regina Casé na Favela Heliópolis, isso lá em 2005, por aí. Ali foi uma loucura, que quando estourou na Globo, no programa da Regina Casé, virou uma loucura. Bombou, não tem mais jeito.

É sempre o primeiro sábado de cada mês. Ele é um sarau mensal. E a temática, ele mantém a forma original da Cooperifa, então as pessoas se inscrevem, eu sou o agitador, o cara que apresenta, vou chamando os inscritos. E também o negócio da música a gente, quer dizer, existe um cara de violão ali, como é outro local eu tento encaixar, mas eu sempre falo que o negócio é poesia, o barato lá é poesia. Porque o músico leva vantagem, como o Sérgio falava, o músico leva vantagem, um violão solitário e pum. E ele faz relaxar, a música relaxa, as pessoas começam a conversar, e tal. E dentro de um bar então, começa a beber, quer sair pra fumar. E a poesia, o poeta é ele, a voz, a dramatização. O cara canta, demora muito, na hora do poeta, o poeta, entendeu? O A Plenos Pulmões segue a mesma pegada, é poesia, a gente trabalha com poesia. E é a mesma pegada, não modificamos em nada do original.

 



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